Logo no início de O poder da arte (Cia. das Letras, R$ 89, 520 páginas), o historiador inglês Simon Schama comunica aos desavisados: “A silenciosa reverência da galeria pode levar você a acreditar, enganosamente, que as obras-primas são delicadas, acalmam, encantam, distraem – mas na verdade elas são truculentas”. É uma boa introdução para um livro que estuda obras que se propõem a ir além do prazer da observação, causando, muitas vezes, assombro. Baseado no programa de televisão Simon Schama’s power of art, que rendeu em 2006 um Emmy à rede britânica BBC, O poder da arte trata de “trabalhos-chave” na obra de oito mestres da arte. Caravaggio, Bernini, Rembrandt, David, Turner, Van Gogh, Picasso e Rothko – todos eles passavam por grande inquietação pessoal ao criar os trabalhos analisados por Schama. Picasso e Turner se sentiam pressionados por circunstâncias políticas, Caravaggio e Bernini procuravam por reabilitação. O resultado, em mármore ou tinta, é aquilo que o historiador chama de “autodramatização” – a tradução dos próprios conflitos em obra de arte.
Se ficasse apenas na avaliação crítica, O poder da arte poderia se tornar tedioso. Mas Schama usa sua experiência de mais de 40 anos como historiador (com passagens pelas universidades Harvard e Colúmbia, onde hoje leciona) para reconstruir, com inteligência e graça, as trajetórias de seus oito mestres eleitos até a feitura das obras em questão. O contexto social e político, fofocas sobre concorrentes e até detalhes da intimidade dos artistas contribuem para que o leitor compreenda a dimensão do impacto de cada obra para o público de suas épocas.
DRAMAS ARTÍSTICOS
Em O poder da arte (no alto, à dir.), o historiador inglês Simon Schama (acima, à dir.) conta como foram feitos trabalhos de oito artistas em momentos de forte inquietação. Em Davi com a cabeça de Golias (acima, à esq.), Caravaggio retrata Golias usando o próprio rosto como modelo
Em O poder da arte (no alto, à dir.), o historiador inglês Simon Schama (acima, à dir.) conta como foram feitos trabalhos de oito artistas em momentos de forte inquietação. Em Davi com a cabeça de Golias (acima, à esq.), Caravaggio retrata Golias usando o próprio rosto como modelo
Os últimos anos antes da morte do pintor italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) foram marcados por fugas incessantes. Além das arruaças em que se metera a vida toda, o artista havia matado um homem durante uma briga, o que o fez ser condenado à pena de morte. Entre uma cidade e outra, durante um período de convalescença, Caravaggio pintou Davi com a cabeça de Golias (1605-1606). O rosto do gigante Golias teve como modelo o próprio artista. Para Schama, o quadro é a tentativa de redenção de Caravaggio, como se ele se entregasse em meio a um deleite barroco. Afirma Schama: “Caravaggio se entregava, sob o disfarce de Golias. ‘Culpado, conforme acusação’, a cabeça parece dizer”.
Usar a biografia de um artista para explicar sua obra combina com nosso tempo de culto exacerbado às celebridades. Isso só fortalece O poder da arte. Ao resgatar dramas pessoais dos criadores para chamar a atenção para obras menos lembradas de suas carreiras, Schama atualiza o significado da expressão “obra-prima”.
Fonte: revista Época
Até mais!
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